Prof.ª Josi Brandão
No ano de 1789, um movimento
importante acontecia na região das Minas Gerais, composto por uma pequena elite
de Vila Rica, atual Ouro Preto, contra o domínio português. As reuniões
aconteciam sempre em lugares secretos, na calada da noite, e a cada dia, contavam
com um número maior de integrantes. A maioria era pertencente às classes mais
ricas de lá, mas havia também quem viesse das camadas populares e,
principalmente, militares de baixa patente. Os inconfidentes confeccionaram uma
bandeira e um lema, que hoje em dia pode ser visto na bandeira que representa o
estado de Minas Gerais.
A revolta estava programada para o
dia em que fosse anunciada a Derrama, um novo imposto cobrado para complementar
os débitos que os mineradores acumulavam junto à Coroa Portuguesa. Planejavam,
inclusive, executar o governador de Minas em praça pública, tomando o controle
das tropas sediadas na cidade e na província.
A real intenção dos revoltosos
inclusive gera, até hoje, discussões sobre a faceta do movimento. Muitos o definem
como um movimento que buscava a liberdade de nosso país. Outros já falam em
contornos mais regionais, atribuindo sua "quase" eclosão ao
descontentamento da população de Vila Rica com o governo português. Há ainda
pesquisadores que irão buscar caminhos que indicam interesses particulares como
desencadeadores do movimento. Mas, todos concordam em um ponto: o movimento
eclodiu diante do quadro de escassez de ouro, na região de Minas, a partir da
metade final do século XVIII.
Considerada abusiva, a taxa da
Derrama tinha muita rejeição por parte dos mineradores. Era uma prática
opressora e injusta, onde em uma data específica divulgada pela Corte
Portuguesa, soldados enviados pelas autoridades prendiam quem era contra, quem
protestava ou se negava a colaboras. Sendo assim, a elite intelectual e
econômica da época juntou forças para se opor à Portugal. Todos os líderes da
conjuração estavam endividados com a Coroa, fato motivador para que se
envolvessem numa revolta contra a Metrópole. Simbolicamente falando, a data
escolhida para desencadear a revolta foi justamente a mesma em que se esperava
que o governador da Capitania de Minas Gerais, o visconde de Barbacena,
ordenasse a cobrança da Derrama. Talvez esperassem apoio da população à sua
luta anticolonial.
No campo das ideologias, as
principais influências foram as mesmas que motivaram a revolução francesa, no
ano de 1789, fundamentada pelo Iluminismo, com os princípios de igualdade,
fraternidade e liberdade, além dos interesses particulares, que foram muito
fortes. As leis seriam reformuladas, mas a escravidão mantida, numa espécie de
Iluminismo filtrado, prevalecendo elementos de interesse da elite.
Eram vários os líderes do
movimento. Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto,
além da figura de Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes. Mas, em relação a este
último, seu papel na revolta é ainda muito discutido, talvez devido ao martírio
a que foi submetido. Sua figura é lembrada como a do principal líder do
movimento, algo muito questionado por diversos autores.

Mas será que Tiradentes não foi um
herói inventado? A historiografia recente mostra que este homem não foi nada do
que dizem ser. O nosso Tiradentes, herói nacional após a proclamação da
República, era considerado um vilão até 15 de Novembro de 1889. Tiradentes
provavelmente foi apenas um bode expiatório de uma revolução que estava mais
preocupada com o quinto do ouro das Minas Gerais que era envias a Portugal. A
clássica imagem de Tiradentes (de barba e cabelo comprido) é ilusória. Ele
nunca possuiu cabelos compridos, nem barba. Seja em sua época de militar (posto
que os membros do exército devem moderar a quantidade de pelugem pelo rosto),
seja em seu período na prisão (os pelos eram cortados a fim de evitar piolhos),
ou mesmo no momento de sua execução (todos os condenados à forca deveriam ter a
cabeça e a barba raspadas, para expor bem o rosto).

A lembrança de Tiradentes e de seu
movimento se tornou importante, a ponto de receber interesse nacional, a partir
da Proclamação da República. Para o historiador José Murilo de Carvalho, autor
de A Formação das Almas (Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 1ª edição, 1990),
"para consolidar-se como governo, a República precisava eliminar as
arestas, conciliar-se com o passado monarquista, incorporar distintas vertentes
do republicanismo. Tiradentes não deveria ser visto como herói republicano
radical, mas sim como herói cívico religioso, como mártir, integrador, portador
da imagem do povo inteiro", alguém que fosse um líder mas de
características também submissas, como exemplo ao povo. A imagem cabeluda foi
construída para que ele se assemelhasse à figura de Jesus, aumentando seu tom
de mártir, vítima e herói. Assim como Cristo morreu pela humanidade, ele teria
morrido para salvar o Brasil. Queriam os republicanos substituir todas as
figuras nacionais de relevo, obviamente monárquicas (sistema de governo
utilizado pelo Brasil até 1889), por criaturas inventadas, revolucionários
anarquistas, homens fictícios, verdadeiros heróis inexistentes.

Só nos últimos anos, a ideia do
mito vem sendo desconstruída por alguns autores , algo que representa, de fato,
um retorno aos documentos, à valorização de uma pesquisa empírica mais apurada,
à busca de uma nova leitura, de aspectos ainda não tratados em fontes
anteriores que, apesar de já muito utilizadas, ainda têm muito a revelar. Diz
ainda José Murilo de Carvalho: "ficam claros alguns aspectos importantes
na construção do perfil heroico de Tiradentes, que acaba por utilizar suas
fraquezas, sua situação social inferior, e até mesmo seus supostos erros, como
elementos de valorização de sua pessoa e de sua atuação".
Embora a historiografia oficial
considere a Conjuração Mineira como uma grande luta pela libertação do Brasil,
o historiador inglês Kenneth Maxwell, autor de A devassa da devassa (Rio de
Janeiro: Terra e Paz, 2ª ed., 1978) fala que "a conspiração dos mineiros
era, basicamente, um movimento de oligarquias, no interesse da oligarquia,
sendo o nome do povo invocado apenas como justificativa, e que objetivava, não a
independência do Brasil, mas a de Minas Gerais. Colocando também o Tiradentes
bem diferente do que a história passou, um homem sem barba, sem glórias e sem
liderança".
Existe um Tiradentes sob várias
faces: o mártir símbolo dos republicanos, o sacrificado como Jesus Cristo, o
bode expiatório, o líder da Conjuração Mineira, o ignorante. Qual dessas seria
a face verdadeira? Especulações à parte, o que importa na história da
Inconfidência Mineira é que a imagem de Tiradentes enquanto herói resiste ao
tempo. Mas, como a História do Brasil continua sendo escrita, qual a história
que será contada, no futuro, sobre o que está ocorrendo no presente?
Afinal, o poder republicano
construiu um mito fortemente solidificado, ainda nos dias atuais, sendo
reproduzido em diversas circunstâncias, comparando o herói construído à imagem
de Cristo, muito sustentado ainda na ignorância das massas.

Como se pode perceber, desde o
enforcamento de Tiradentes, a sua imagem e a sua história foram sendo
recontadas por diversos grupos. Os republicanos foram aqueles que mais se
apropriaram e incorporaram em seu discurso a importância de Tiradentes na
história brasileira, apontando-o como o principal responsável pela
"salvação" do povo, para que nem ele e nem a república fossem esquecidos.
Muito ainda há para ser abordado e discutido, e a historiografia brasileira vem
se enriquecendo a cada dia com novos trabalhos e novas pesquisas, um processo
ainda árduo e demorado. A constatação de elementos que têm se mantido desde o
século XIX indica, por um lado, a vitalidade do mito e, por outro, o poder
persuasivo das associações estabelecidas, entre o sacrifício heroico de
Tiradentes e as condutas dos que se colocam como seus herdeiros: Tiradentes
ficou eternizado na História.